sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Encarnações de Crianças Queimadas

O Papai estava perto do lado da casa pendurando a porta pro inquilino quando ouviu os gritos da criança e a voz da Mamãe se elevando entre eles. Ele pôde se mover rápido, e a varanda dos fundos dava direto na cozinha, e antes que a tela da porta tivesse batido fechada atrás dele o Papai tinha pegado a cena completa, a panela virada no azulejo do chão antes do fogão e o jato azul da boca e o chão uma piscina de água fumegando feito muitos braços estendidos, o garotinho e sua fralda folgada ali de pé rígido com o vapor saindo dos seus cabelos e seu peito e ombros escarlates e os olhos rolando pra cima e a boca aberta de uma forma muito selvagem e parecendo de algum jeito separada dos sons que emitia, a Mamãe agachada sobre um joelho com o pano de prato ali alisando-o inutilmente e alcançado os gritos com o próprio choro, tão histérica que estava quase congelada. O joelho dela e o pezinho pequeno e suave  descoberto continuavam na piscina fumegante, e o primeiro ato do Papai foi pegar a criança debaixo dos braços e erguê-la pra longe dali e levar pra pia, da qual ele atirou pra fora os pratos e atingiu a torneira pra deixar a água gelada de poço escorrer  pelo pé do menino enquanto com sua mão em concha ele acumulava e derramava ou arremessava mais água gelada na cabeça e nos ombros e no peito dele, querendo em primeiro lugar ver o vapor parar de sair dele, a Mamãe sobre seus ombros invocando Deus até ele mandar ela ir atrás de toalhas e gaze se eles tivessem, o Papai se movendo rapidamente e bem e sua mente de homem esvaziada de tudo que não fosse propósito, não consciente ainda de quão suavemente ele se movia ou de que ele tinha cessado de ouvir os gritos mais altos porque ouvi-los iria paralisá-lo e tornar impossível o que tinha que ser feito para ajudar sua criança, cujos gritos eram regulares como respiração e seguiam por tanto tempo que eles já tinham se tornado uma coisa na cozinha, outra coisa para se mover rapidamente ao redor. A porta lateral do inquilino lá fora estava pendurada por metade da dobradiça superior e se moveu levemente no vento, e um pássaro no carvalho do outro lado da entrada da garagem parecia  observar a porta com a cabeça erguida enquanto os choros continuavam vindo lá de dentro. Os piores escaldos pareciam ser no braço e no ombro direitos, o vermelho do peito e estômago estava ficando rosa debaixo da água gelada e as solas suaves dos pés dele não estavam empoladas pelo que o Papai pôde ver, mas o garotinho continuava apertando os pequenos punhos e gritando exceto que agora meramente por reflexo do medo o Papai iria saber que ele pensou possivelmente depois, o pequeno rosto distendido e as veias filiformes saltando sobre as têmporas e o Papai repetindo que ele estava aqui ele estava aqui, adrenalina vazando e uma raiva da Mamãe por permitir que essa coisa acontecesse apenas começando a se reunir em feixes na extremidade traseira da sua mente ainda a horas antes da expressão. Quando a Mamãe retornou ele não tinha certeza se devia enrolar a criança em uma toalha ou não mas ele molhou a toalha por baixo e fez, envolveu-o firme e levantou seu bebê da pia e o colocou na borda da mesa da cozinha pra acalmá-lo enquanto a Mamãe tentava checar as solas dos pés com uma mão acenando ao redor da área da boca dela e proferindo palavras sem sentido enquanto o Papai se dobrava por dentro e  ficava cara a cara com a criança na borda xadrez da mesa repetindo o fato de que ele estava aqui e tentando acalmar os choros do garotinho mas continuavam esbaforidamente os gritos da criança, um alto e puro som cintilante que poderia parar seu coração e os beicinhos e gengivas dele agora estavam tingidos com o azul claro de uma chama baixa o Papai pensou, gritando quase como se ainda estivesse debaixo da panela virada sofrendo. Um, dois minutos assim que parecem muito mais longos, com a Mamãe do lado do Papai falando em-marchinhas perto do rosto da criança e a cotovia no galho com a cabeça pro lado e a dobradiça ficando branca em uma linha com o peso da porta enviesada até que o primeiro feixe de vapor veio preguiçoso de debaixo da bainha da toalha enrolada e os olhos dos pais se encontraram e arregalaram—a fralda, que quando eles abriram a toalha e encostaram as costas do menino pequeno deles no pano xadrez e desprenderam as presilhas suavizadas e tentaram remover ela resistiu levemente com novos gritos altos e estava quente, a fralda do bebê deles queimou suas mãos e eles viram onde a água de verdade tinha caído e encharcado e ficado queimando o bebê deles todo esse tempo enquanto ele gritava pra que eles o ajudassem e eles não conseguiram, não  conseguiram contudo e quando eles tiraram e viram o estado do que tava ali a Mamãe disse o primeiro nome do Deus deles e se agarrou na mesa pra conseguir se manter de pé enquanto o pai se virou e deu um soco no ar da cozinha e amaldiçoou tanto si próprio quanto o mundo não pela última vez enquanto sua criança poderia agora estar dormindo se não fosse pelo ritmo da sua respiração e os minúsculos movimentos desferidos por suas mãos no ar abaixo de onde ele estava estendido, mãos do tamanho do dedão de um homem crescido que tinham agarrado o dedão do Papai no berço enquanto ele  observava a boca do Papai se movendo em uma canção, a cabeça dele inclinada e parecendo ver bem através dele indo dentro de algo que os seus olhos fizeram o Papai se sentir solitário de uma forma estranha e vaga. Se você nunca tiver chorado e quiser, tenha uma criança. Quebra o seu coração por dentro e alguma coisa vai uma criança é uma canção anasalada que o Papai ouve de novo como se a senhora estivesse quase ali com ele olhando pra baixo pro que eles tinham feito, embora horas depois pelo que o Papai não iria se perdoar mesmo era o quão doentiamente ele queria um cigarro bem ali enquanto eles envolveram a criança o melhor que eles puderam em gaze e duas toalhas de mão cruzadas e o Papai o levantou como um recém-nascido com o crânio em uma das palmas e correu com ele pra caminhonete aquecida e queimou pneu o caminho inteiro até a cidade e a UTI da clínica com a porta do inquilino pendurada aberta daquele jeito o dia inteiro até que a dobradiça rompeu mas a essa altura já era muito tarde, quando não iria parar e eles não puderam fazer parar a criança tinha aprendido a sair de si própria e observar todo o resto se desdobrar de um ponto acima, e seja lá o que for que se perdeu daí em diante nunca mais importou, e o corpo da criança se expandiu e caminhou acima e recebeu o pagamento e viveu sua vida desabitado, uma coisa entre coisas, com a alma do seu eu com tanto vapor em cima, caindo como chuva e depois ascendendo, o sol subindo e descendo feito um ioiô.

David Foster Wallace
Incarnations of Burned Children
, Oblivion: Stories
Traduzido por J.V.

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